01 fevereiro, 2007

leannán-sidhe (dois)

Belém e o infante a tirar a bissectriz à Cova do Vapor do alto da pedra de lioz, o primeiro domingo de Janeiro é Belém e o infante à proa. E tu és uma gota de Tejo, um limo no cais, uma lapa na quilha de um cacilheiro, enfim, uma mandíbula gretada, vestígios de galão nas esquinas da boca, um pingente de latão, uma lágrima de manteiga na lapela do casaco castanho. E ris. Ris de quê? Desse vazio entre têmporas? De que ris afinal? Da primeira vez que percorremos a Augusto Gil - trepámos as escadas do teu prédio cor-de-rosa e depois um pequeno socalco de tijoleira, que ternura, do corredor para o teu quarto perfumado de lavanda e pinhal -, fui tomado por um pânico frio espinha acima de encontro à nuca, enroscando-se em seguida nas amígdalas, a tal ponto que regredi aos tropeções pelo corredor, escalavrando tapetes de Arraiolos, uma jarra de camélias de plástico e um mosqueteiro de feldspato, e por pouco não profanei os girassóis nos azulejos da casa de banho com os salmonetes em liquefacção que nadavam contra a corrente do meu esófago. E então?
- Hoje estou bonita, não estou? Diz lá, jóia, se não estou bonita? – e atravessas o estrado da esplanada a lancetar pálpebras com a hipérbole da blusa, uma velha equilibrista pequinesa a dominar bica, bule e rissóis de camarão nas pontas das artroses, e esse chapéu de palha, puta que o pariu, a deixar antever um zimbório de cabelo tingido.
- Faço votos de que conte muitos – proclama-se por perto sobre o bocal do telefone, no superlativo babado que a solidão ensaia; no extremo da mesa um pires em flor, as pétalas, suponha-se, uma desordem mundana de guardanapos e restos de pacotinhos de açúcar.
E o infante de bigode ao Sol na ponta exígua de uma caravela ancorada em lodo. Os teus lábios projectando-se uma, duas, três vezes para os miasmas do chá sem consumar o beijo. Então contemplas no rio a passagem de contentores amontoados num convés.
- Não tem importância, jóia. Deixa lá. Acontece – os teus dedos percorriam-me o cabelo num consolo de ama preta; de modo que me senti na obrigação de te explicar que os médicos tiveram de induzir na minha mãe um coma transitório, porque não havia meio de eu nascer, porque não queria sair e isso era tudo.
O primeiro domingo de Janeiro é, agora, o cair das vinte e trinta e dois no relógio de corda sobranceiro ao aparador. Inverno relutante. Uma constipação azul na ponta da esferográfica, que se detém estúpida sobre a folha de jornal. Dez, vertical: Feixe de palha em que se envolvem objectos frágeis para se não quebrarem com o transporte.

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