27 abril, 2006

repartição (dois)

Seis horas e trinta e dois minutos. Olha bem para ti, farrapo de gente. O cabelo a pender, teimoso, para um grisalho temporão, filaças em tom mortiço a ocultar o despontar triunfal das tuas orelhas, que embaraço o teu – rememoras, não sem um fungar de desdouro, a troça desapiedada nos corredores de um liceu cinzento-Cacém que cheirava à confusão húmida de um cais do Delta do Mekong, portanto a espinhas de peixe, mosquedo, trampa e incenso, pelo menos assim o imaginavas no zénite das tuas fantasias púberes a respeito das prostitutas de Saigão, cabelo azeviche e nádegas que eram um encanto, want boum-boum very good, mister?, e o dedo obeso da professora de História a designar-te do extremo da ardósia entre uma poeira de giz acesa de sol suburbano, o motejo e a saliva nos risos, a boca vincada de um desdém majestático enquanto descrevia os elefantes de Aníbal a marcharem para Roma, orelhudos e mastodônticos, orelhudos e mastodônticos, orelhudos, orelhudos, mastodônticos, que orelhudos, raios os partam, os elefantes de Aníbal a desencaixarem, num estampido histérico, os tacos de madeira carunchosa da sala de aula e a professora a sucumbir numa massa ininteligível de carne, pingentes de pechisbeque, écharpe e tailleur, abhorrescere a sanguine daí por diante -, as orlas dos olhos curtidas a talhos de cursor e luz de lâmpada tubular, um branco de autópsia sobre canteiros de cabeças acorrentadas a torreões de papel e furadores numa sala abafadiça, arquivo vivo e arquivo morto, gavetas de expediente, para o conselho e para os serviços, para cima e para baixo, por vezes para os lados, e lá no fundo dessas cavernas de osso que avalias agora, enquanto rapas o queixo, no espelho em círculo da casa de banho, desvendas, naufragadas num negrume de pedinte insone, duas azeitonas em salmoura a espreitar, a espreitar, a espreitar, sempre a espreitar, umas vezes com desconfiança, depois com ciúme e por fim, como muito bem sabes, a encolher-se de um medo que te faz cócegas no esfíncter.

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