03 fevereiro, 2010

falsete

Apercebeu-se de que a sua existência se tornara redundante quando, assomando ao alumínio lacado da marquise, achou-se a habitar uma rua elíptica, um prédio chocolate de leite, dois contentores de lixo numa baía de cimento, à vista de um resto de canavial, um velho a coxear entre sacos de plástico, duas maçãs, um quarto de broa e uma cabeça de nabo para a sopa, uma cigana de luto a migar lágrimas, suor e feijão verde para um alguidar desmaiado entre o veludo dos tornozelos, cortinas de pano estampado nas escotilhas do furgão branco. Em seguida as vozes que até aí o haviam guiado sossegaram. Por uma eternidade de três minutos. Tique. Taque. Tique. Taque. Tique. TAC – tomografia axial computorizada. Antes de se lançar do quarto andar na direcção de um pino de betão sobre a fímbria do passeio ainda encontrou tempo para se recordar do único pensamento a roçar o brilhantismo que o seu cérebro ousara produzir em três décadas de sístoles e diástoles, a ideia de que a voz de Kate Bush em Wuthering Heights seria a voz de um par de lábios vaginais, caso um par de lábios vaginais pudesse cantar.
- Salta, meu maricas de merda – gritou-lhe o cabo Faria, uma das personagens que lhe ocupavam os parietais, persistentes como cardos.