27 janeiro, 2013

amarelo torrado


O Tejo a bombordo, a cidade a estibordo, um vento gélido de Janeiro pela proa e uma serpentina de automóveis à popa. Buzinas de incentivo a uma intrépida navegação de triciclo. Nem todas. Há quem se exaspere com os escassos nós da barcaça que nos impele por leitos escalavrados em tom de girassol. Aqui paralelos, além alcatrão, acolá saibro de uma qualquer obra inconclusiva, adiante os carris do eléctrico. Seca-se-nos a boca com o frio. Fechamo-la. Para evitar uma ou outra mosca serôdia.

Trepamos aqui mesmo esta colina, o motor a arquejar, a mão de quem amo a afundar as unhas na minha perna – mais devagar, olha o buraco, cuidado com os carros, que frio, atenção à curva -, e de súbito um capricho de alvenaria, uma água-furtada, um pináculo, uma caleira, um lençol a ser furtado à corda, um zimbório a despontar do casario, o confuso perfume de especiarias, excrementos de pombos, vestígios, a um só tempo, de chuva carbónica e da condição humana, de vetustas drogarias e de senhoras bem-postas que se revezam nos cafés, da naftalina que se desprende de um velho a acenar-nos num assomo de alegria, quando aportamos para o deixar atravessar a passadeira, outro que nos observa num torpor de vinho enquanto procura chegar na oblíqua à outra margem. A réstea de Idade Média numa quelha do Castelo que vislumbramos quando travados por um semáforo. É Lisboa que se desenha como se nunca a tivéssemos visto. E o vento deixa de importar. E as buzinas convertem-se num eco longínquo. E o Sol acende-se dentro de nós. E até de quem nos fotografa como se fôssemos um epopeico par de descobridores que é preciso imortalizar.