20 novembro, 2009

escape de rendimento

Ao domingo escancaro os pórticos de centros comerciais com o vigor de um Godofredo de Bulhão, bonjour mesdames e messieurs, o corcel de fibra de vidro a descansar os quadris no estábulo de cimento e amianto, entre carrinhos de supermercado que abrigam restos morrediços de alface e farrapos de papel a anunciar natais de cartolina, baquelite e poliestireno.


No ar um cheiro a cordite, às vezes a cigarros, às vezes a mijo, às vezes a tosses convulsas e a bafios de axila, às vezes um vago gargarejo de Bing Crosby no intervalo dos mugidos do gado graúdo. De forma que apresso a platina das sapatilhas na direcção de ruas intestinas em marmorite, contemplando-me no reflexo das montras, uma corrente de ouro a debruar-me o pescoço sobre a camisola da selecção e o olhar de atalaia à caça de prodígios da anatomia, creio que de plus en plus de femmes s’habillent comme des salopes. Trepo a uma das gáveas e colecciono regos de mamas para memória futura. Depois desapareço num oceano de torpores, sacos e telemóveis, que amanhã tenho um serviço na Bobadela.

16 novembro, 2009

janelas de alumínio

O problema, senhor doutor, verifica-se quando lhe procuro os calcanhares a meio da noite e os encontro frios como há um par de dias, a jazerem como pedras no extremo do colchão apesar da flanela morna, apesar desta calidez de maçã reineta acabada de assar que trago entre as virilhas, apesar de ter pintado as unhas de vermelho sangue de boi, nem queira saber, senhor doutor, o que ele escoicinha quando eu pinto as unhas de vermelho sangue de boi, a afundar o nariz na minha orelha enquanto me segreda nomes feios, sua isto, minha aquilo, a menina portou-se tão mal e outras idiotices, por vezes pede-me que o chame de Eduardo, ele que se chamava Augusto, imagine-se, nunca quis saber porquê com medo de uma resposta que eu conhecia sem nunca a ter escutado, certa vez começou a guinchar, Deus me perdoe, como um porco de criação a arrojar-se-me de encontro às nádegas, sua isto, minha aquilo, e eu a pensar na sopa de feijão ao lume, senhor doutor, juro-lhe que na órbita da colher de pau na sopa de feijão ao lume encontrava uma paz de ciprestes tocados a vento de cemitério, era para aí que os grumos me levavam numa felicidade de abandono, mas há um par de dias que lhe procuro os calcanhares a meio da noite e os encontro frios, pelo que creio, não tenho a certeza, que morreu, apesar dos olhos apontados ao lustre, apesar da mão a fazer força sobre o peito, apesar de ainda o ouvir a chamar-me, tu aí anda cá, de ainda o sentir a designar-me com o queixo, debruçado para os amigos a um canto do café da praceta, aquela ali é a minha mulher, uma chata, abre as pernas amiúde sem grande arte, mas faz uma sopa de feijão que me acalma estas fúrias de licantropo, este ímpeto de a fechar na arrecadação para lhe experimentar os vestidos e as saias, as blusas de cambraia e as meias de vidro, os corpetes e as estolas, os sapatos e os colares cuidando que ela jamais desconfiará.

07 novembro, 2009

látego

Não sei escrever. Esgoto-me em adjectivos. Tropeço antes de chegar ao ponto final parágrafo. Custa-me ser demorado. Aborrece-me ser curto. De ideias e de engenho. De fôlego e de relevância. Um topete de amanuense ao balcão da repartição de finanças. Diga. As frases saem-me das costelas a golpes de chanfalho, por vezes de uma narina em fiapos de sangue. Se chego a metade de uma página, exulto num contentamento de canário. Temos escritor. Olarilolela. De Verão transpiro quadras de manjerico. Ó meu Santo António ó meu Santo Antoninho na Páscoa quero a giesta no Natal o azevinho. De Inverno tossico relatos de almanaque. Delmiro vivia preso a um passado de sordície em vãos de escada e reuniões do partido que são ambientes que no fundo se completam dado que ambos ressumbram essências de putedo. Que. Que. Que. Que. Ó que caralho. Chafurdo nos dicionários. Tal como o porco da minha tia-avó num lodaçal de talos de couve e casca de batata. Até amanhã.

03 novembro, 2009

pietas est fundamentum omnium virtutum

Sinto-a a rondar-me como um tigre fátuo. Um breve rugido entre juncos. Depois uma paz parda de recolher obrigatório. Por vezes um sopro morno na nuca. Anuncia-se aos poucos em efémeras vertigens de crepúsculo, em sístoles e diástoles descompassadas, no cingir do torno em redor da dura-máter, no suor errático, no desconcerto da traqueia. Dizem-me que não. Mas eu conheço-a.

comité central

requiem

Esbarronda-se uma arriba em Tenerife. Morrem duas pessoas. A repórter escreve o texto para a peça de televisão. “As duas mulheres que morreram não conseguiram escapar”, explica. Recordo, imagine-se, um coto de giz carmim entre os dedos da dona Bernardete a rasurar-nos as excrescências da sintaxe num quadro da Escola Primária de Queluz.