31 maio, 2008

Vor der Kaserne, vor dem großen Tor – stand eine Laterne und steht sie noch davor… (dois)

O torso de Júlia, uma bata de alvura incorruptível cingida em redor de seios secos por três botões de tamanho generoso, erguia-se de um balcão de mármore, por entre uma pequena montra de pirâmides de chocolate, pastéis de nata e mil-folhas e um maço de papel pardo. E no cimo do corpo esguio floria uma cabeça de barracuda, os lábios pintados de sangue coagulado num beijo de eternidade. E sobre tudo aquilo brotava uma quadrícula de galhos fulvos, que bonito era o cabelo de Júlia quando a camioneta da marcenaria ocultava e descobria o sol numa brincadeira de luz, em marcha à ré de encontro ao estuário de alcatrão na rua Dom Pedro IV. O lancil era portanto o cais das colunas do mundo de Júlia, uma porta de alumínio fuliginoso, amarela e verde, três paredes de ladrilhos brancos recortadas por uma linha de ladrilhos mais pequenos, pretos uns, lascados outros, uma bancada que servia de vale a serranias de carcaças e pães de forma, um padeiro desenhado em papel brilhante. Panificação Reunida de Queluz.
- Quantas quer? – perguntava Júlia, um saco de pano, PÃO, na mão direita e a comichão nas virilhas a desaparecer debaixo das unhas da mão esquerda, sobre a bata e uma saia de fazenda. – Ando chocha como o tempo, dói-me aqui e acolá, ali e alhures, e às vezes converso com um papo-seco ou um pão de Mafra, quando ninguém espreita das ombreiras da porta e pressinto o ataque epiléptico na curva da orelha, na estática da onda média daquele transístor, tem que esticar o pescoço se o quiser ver melhor, casado há anos com o telefone num nicho da parede, o meu neto trabalha na rádio, é locutor, declama anúncios de cremes de barba e sortidos de bolachas, de modo que o rádio a pilhas é o meu sol, os papo-secos são finas nuvens de farinha de trigo e o lancil é o cais onde embarco numa passadeira que me leva, acima abaixo nas ondas, até à outra margem, onde compro a hortaliça e a fruta, o xarope de groselha e uma caixa de bombocas para o meu neto, que é guloso, o tal que trabalha na rádio, creio que já o tinha citado, e declama anúncios, um imprestável, no fundo um maricas de merda, de modo que o sol anda quase sempre encoberto e dos cantos da minha boca nasce uma espuma grossa, bochechas abaixo em golfadas de tumulto, um espasmo, dois espasmos e o corpo retesa-se-me como uma rolha de cortiça, abro muito os olhos num espanto de coruja e depois passa. Quantas quer?
As mãos de Júlia, duas conchas de búzios rematadas por nódulos de artrose, distribuíam o pão a partir de grandes cestas brancas, PÃO pintado a vermelho-trincha no dorso de uma Macal Minarelli. E sossegavam a fome. E sossegavam ardores púbicos, coceiras de menopausa, que bonitas eram as mãos de Júlia quando somavam o preço de quatro carcaças e um bolo-rei numa tira de papel pardo. Que bonitas eram as mãos de Júlia, a cada falangeta um ponto cardeal diferente, a cada nódulo um pequeno sinal negro, acolá um rubro, nos punhos as sardas e debaixo das unhas compridas colecções de farinha e migalhas. Depositávamos a vida nas mãos de Júlia sem cuidar que nas mãos de Júlia havia vida.

24 maio, 2008

laranja (três, epílogo)

Código laranja. Doente a necessitar de atenção urgente. Na sala de urgências de um hospital de subúrbio, onde o salmão alastra pelas paredes e o sangue coalha esquecido num quadrado de chão, fino-me aos poucos, primeiro numa cadeira que não pode suster o meu corpo pendente, depois numa maca suja. Bracelete laranja na triagem. Uma etiqueta e um cateter a desabrochar azul do meu braço direito. O coração a fugir-me corredor fora e eu estendido numa maca suja a olhá-lo impotente e sem uma lágrima de força. Nisto dou por um estetoscópio a circum-navegar mamilos e tufos de pêlo. Inspira. Expira. Vou expirar aqui. Sinto que vou expirar aqui, de olhos ora no meu coração que desaparece na curva do corredor ora nos olhos aflitos que me guardam os passos desde que espreitei o mundo pela primeira vez. Depois a casa de banho, uma pouca de luz que não mitiga esta vertigem que trago há horas nas têmporas e no peito e uma catarata de mijo que se precipita vacilante na parede gordurosa de um urinol e nos extremos dos meus sapatos de pele coçada. Ou então acabo ali ao fundo, para lá de uma porta de contraplacado, de ventosas a escorregarem-me dos cabelos do peito untado de gel, o gráfico a hesitar aqui e além como um contratempo de Max Roach. Pam, pam, pam. Numa sala esconsa da escola D. Francisco Manuel de Melo, a professora de música ditava-nos assim o compasso – pam, pam, pampam, pam. E a minha cabeça vogava alhures nas mamas precoces de uma colega de turma entre um e outro pam. Um dia apanhou-me naquele sopor languescente do amor impossível.
- O menino saiu-me cá um porco, deixe-me que lhe diga – e eu deixei que ela o dissesse sem esboçar uma resposta, um vá chamar porco a quem a pariu de entre as nádegas, por exemplo, enquanto a turma ria do alto do que me pareciam ser camarotes de teatro e a colega das mamas torcia as sobrancelhas numa momice de nojo, náusea e escárnio, o mais aguçado escárnio, qual lâmina de canivete que me retalhava o coração para bifinhos de cebolada. – O coração retalhado é mais ou menos o que me trouxe cá, doutor, o coração retalhado, o formigueiro e este rumor de água a escorrer de uma fraga longínqua – e o médico muito preto a envolver-me o braço numa almofada de ar. – Diga-me com franqueza, doutor, vou acabar nesta maca suja, encostado a uma parede do corredor e o meu derradeiro vislumbre antes do peido capital será o de uma lâmpada fundida no tecto deste hospital sujo. É isto. Isto é tudo. Não é isto, doutor? – pergunto na direcção dos dentes muito brancos do médico, Dr. Albino escrito num rectângulo ao peito entre colchetes. – Não. Hoje não é dia de morrer.
Ainda.

23 maio, 2008

V’n wie kimt Ihr? (um)

Meio torso de padre Cruz expia de graça os males de que somos culpados. Fica a um canto da segunda de três pranchas que formam uma estante de montra. Agência Funerária. Também por lá param Nossa Senhora e a cabeça do Cristo a pingar sangue de uma coroa de espinhos em arame e com um olhar sofredor na direcção, presume-se, do Pai, dado que aponta as retinas para cima. Pagelas de santinhos em maços como baralhos de cartas, no topo São Sebastião a fazer lembrar uma almofadinha de alfinetes.
- Muito boa tarde. Como tem passado? O negócio vai bem. Trabalho não falta e Deus Nosso Senhor tem cuidado de mim, que também nunca lhe faltei com nada, salvo aquela vez, há muitos anos, em que me distraí por um instante e entrei pelas quinze e trinta e dois no cinema Olímpia, nádegas e todos os refegos concebíveis diante de mim, numa tela que, dir-se-ia, transpirava óleo de amêndoas doces, tão doces como os gemidos de uma actriz de pêlo farto, benza-a Deus Nosso Senhor, que eu gosto delas como verdadeiras vassouras de cantoneiro. Mas dizia eu que o negócio vai bem. Só aqui na rua, note bem, marcharam quatro em quinze dias.
No interior o mostruário de féretros e lápides, campas e adornos de jazigo, velas mortiças em pequenos castiçais vermelhos, a base em ouro-plástico. Ainda cheira a fruta e hortaliça, a restos pútridos de coelhos esfolados numa nesga de parede, entre um armário de madeira azul e duas folhas de papel lustroso, uma em cima, outra em baixo, a anunciar gasosa e bolachas Maria. Os coelhos eram esfolados numa parede, o sangue a pingar-lhes das carnes como hoje sucede ao Cristo só uma cabeça pálida e quebradiça sobre um quadrado de plástico e quatro letrinhas num autocolante prateado que querem dizer Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum. No lugar do balcão abaulado, que se erguia como as muralhas do Castelo de São Jorge a suster uma encosta de sacas de feijão e de milho, encontra-se agora uma secretária de alumínio e fórmica. Na parede onde os coelhos pendiam a morrer esfolados numa cúspide nasce um calendário, uma menina que ri imortal do alto de um vestido de alças vermelho, um pequeno cão no ninho dos braços. Agência Funerária.
- De maneira que não aguentei e esgalhei o limoeiro ali mesmo, na cadeira do cinema, à medida que na tela uma gorda encostava o rabo de rinoceronte a um vergalho que só visto, o senhor se visse até se torcia de impressão, para a frente e para trás, para a frente e para trás, para a frente e para trás.

21 maio, 2008

Teatro Alves Coelho

No Getsemani, semeado nas tábuas carunchosas do palco, João Bilha, artífice da odontologia de segunda a sexta-feira, Filho do Homem por uma noite pascal, ora ao Pai acocorado a um canto do palco, roçando com os braços suplicantes uma oliveira de contraplacado que ameaça a queda sonora desde as deixas inaugurais do acto. O que vem a suceder quando o demónio irrompe pelas cortinas laterais para poluir a alma de Bilha, o Cristo sexagenário de barriga conventual albardada num atoalhado de linho. Na plateia, devotas e acólitos fazem ranger as cadeiras com estremeções de riso contido e reverência curial, que haviam já ensaiado quando Bilha se vira grego, à mesa com Pedro e demais apóstolos, para quebrar à unha a côdea da broa e passar ao milagre do tinto com travo de groselha. É então que o filho de Maria é levado à força pelo braço armado do Sinédrio, disseminando-se o estupor por entre o público.

Bilha sofre, no acto seguinte, a flagelação de um látego de cordel sobre o mesmo atoalhado do Getsemani e da Última Seia, jamais expondo o torso flácido à apreciação das primeiras filas, onde pontifica o reitor ensonado. Não sem antes comparecer em audiência preliminar ante um Caifás de deixas reticentes e ser submetido à consequente encenação da turba na presença do procurador Pilatos, que se apressa a lavar as mãos num vaso de resina, anuindo ao clamor pela libertação de Barrabás. Muito depois de o povo calar os gritos espumosos, a voz sibilante, pró-Barrabás, de uma actriz recrutada ao bazar no centro da vila continuará, retardada, a ecoar até à derradeira fila do segundo balcão. Depois o palco é deixado a um solilóquio emocionado do Iscariotes, fatalmente corrompido pelos trinta dinheiros.

O Cristo de João Bilha serpenteia com a cruz sobre o ombro, para trás e para diante num palco a arquejar de elenco. O espaço escasseia, pelo que a Via Sacra é reduzida ao essencial; rapidamente emerge, em cena, o Cristo crucificado em gesso. Bilha só regressará ao palco para ressuscitar.


Nota: reciclado

fazendo uso do colete reflector, sinalize, de imediato, o local do acidente

Entardecer. No eixo da rotunda uma palmeira anã. Relva e lascas de pinheiro em redor do ornamento tropical alimentado a monóxido de carbono. Direcções. Algés, Lisboa, a auto-estrada. À direita. Viro à direita. Vou virar à direita. Viro à direita. Começo a despedir-me dos bosques de cimento de Alfragide. Para depois retornar a Alfragide. Retorno sempre a Alfragide. Por vezes tenho a impressão de que a minha vida é uma rotunda em Alfragide. Uma ocasião fui a palmeira e os carros eram Mercúrio, Vénus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Neptuno e Plutão - Plutão? Durou pouco. Alfragide é como uma puta esquálida e com dentes de platina que não conseguimos largar, a glande a latejar gonorreica e não conseguimos largá-la. A puta. Ontem fui Marte. E a translação da Terra foi desviada por uma momentânea desordem cósmica. Por um instante, as atmosferas fundiram-se como o palato da puta e as varizes do pénis de um aposentado do Ministério das Finanças, dióxido de carbono, azoto, árgon, oxigénio, água, néon. Em Marte uma cratera. Na Terra também.

19 maio, 2008

laranja (dois)

A mão direita sobre o peito. Um rumor em crescendo do estômago à garganta. A mão esquerda sem existir, uma vez que não há mão esquerda, apenas um talhe de carne morta e pendente. Inspira, expira, inspira, expira, inspira, inspira, inspira, inspira, inspira. Ar. Não há ar, assim como não há mão esquerda. E agora tão-pouco o braço. Esquerdo.
- Sente-se aí. Tenha calma – decreta a voz próxima e morna de uma boca que lembra cloacas, do alto de um branco de garça, na lapela o anúncio de um Enfermeiro com maiúscula e nos olhos uma inquietude de arganaz. – O doente entra sozinho, se não se importa.
Depois uma maca e sobre a maca um eu diferente do eu que ao fim da tarde rapava os pêlos do queixo e ensaiava as cadências de beijos impressionistas no sentido do espelho, diferente do eu que vestia uma camiza azul e calçava sapatos gastos na esperança mirífica de um abraço. Um eu dormente. Da mão esquerda para o braço, do braço para as pernas, das pernas para o braço cuja mão ainda há pouco sustinha o peito de welsh cob, enquanto um comprimido se desfaz nas catacumbas da língua.
- O que é que sente? – pergunta agora uma voz de régulo, o mesmo branco de garça, mas mais importante, um soba de estetoscópio, muito preto em redor de dentes que riem, a consultar o oráculo tremebundo no meu tórax de paquiderme. – Dói no peito? – e eu de beiços retesados a balbuciar um não no timbre da trompete de Bill Hardman em I mean you, tem piada pensar agora em Art e Thelonious, palavra que tem piada, embora não exista dos mamilos para sul, dado que dos mamilos para sul não há nada para além de um formigueiro e um rumor de água a escorrer de uma fraga longínqua.
De imediato um corredor, uma cigana perdida de porta em porta a perguntar muitas vezes se é agora e uma cocuana de olhar vago empurrada em cadeira de rodas na direcção de uma esquina. Luzes muito brancas que arreliam as pálpebras e a maca a deslizar de encontro a ventosas de octópode a escorregarem-me dos pêlos do peito.
- Prontinho. Deixe lá que há peitos piores do que o seu, ai se há - e um farrapo de papel absorvente a remover grumos frios de goma arábica.
O corredor. De novo o corredor. Sempre o corredor. Uma, duas, três velhas a compararem vagidos e eu na maca encostado à parede do corredor. Uma das velhas a olhar-me com uma estultícia de poedeira e a cigana a carpir-me a sorte. Uma, duas, três velhas e o rumor a desaparecer na transparência de uma radiografia.
- Hoje não é dia de morrer.

16 maio, 2008

cais


No teu cabelo há um vagar de enseada. Vagas preguiçosas. De vaga em vaga até porto seguro. No teu rosto há um areal branco e morno. Sulcos macios. De sulco em sulco até ao leito ardente dos teus lábios. Na tua boca há milénios de ternura. Néctar doce. De hausto em hausto até ao quasar do teu corpo. No teu peito há um leito de mansa perdição. Vágado de alcantil. De vertigem em vertigem até à queda lenta. Então amparas-me e repões a ordem do Universo sem contrapartidas. No teu cabelo torno a adormecer. Amado.


Fotografia: Paulo Lopes

15 maio, 2008

serviço público

Com uma ponta do garfo desenhava um rosto de mulher no charco de azeite, entre uma posta de bacalhau e um par de batatas que fumegavam. Lana Turner emoldurada a grão e cebola picada. A nordeste um copo de vidro grosso, a oeste um guardanapo de papel dobrado em triângulo. Daí a nada o busto de Lana Turner impunha-se à medida que o garfo escorregava no azeite, lânguido, a demorar-se em mamilos efémeros.
- Era a continha, se faz favor.
Aos sábados almoçava depressa, as espinhas a nascerem-lhe uma após outra dos lábios para a faca. Vestia o capote alentejano e apontava à Praça da Figueira com um saco de restos de papo-seco no bolso. Pombos a tarde inteira, a tarde inteira pombos, pombos a tarde inteira. A tarde inteira. Os pombos. Um cair das vinte e trinta e um de uma noite de sábado. Outono relutante.
- Não tenho o coração fechado. Palavra que não. Trago é aqui uma certa vontade de me deitar e morrer durante a noite a sonhar com as mamas da Lana Turner. E reencarnar num pombo da Praça da Figueira.
Aos domingos lembrava-se de outro Outono.
- Observem com atenção os movimentos que ensaio à chegada. As costas verticais, o garbo construído de nada. Os sapatos a percorrerem os linóleos e a pedra cheios de escrúpulo, que o rocio da manhã instala armadilhas antes e depois de uma escadaria de aço esburacado. Vejam bem esta reprodução amadora de um temerário. Atentem na voz sumida que sopra um bom dia. Este que enterra a pá em terra nova sou eu. Estudem-me. Apertem a minha mão direita e sintam-lhe a firmeza calculada, a geometria do encaixe. Apurem o azimute dos meus domínios e visitem-me de quando em vez. Estou mesmo ali, por detrás de um pilar de betão, sentado à secretária.

bilirrubina

Pedro roçava o extremo do nariz com o istmo da língua e acreditava ter nas orelhas o mesmo púrpura das extremidades de Amundsen no frio polar.

União Recreativa de Gândara de Espariz convida associados para assembleia geral extraordinária com vista à eleição de corpos gerentes.

Tabernáculo da fé, tabernáculo da fé. Espere. Já estou a ver. O senhor deixa Queluz como quem sobe para a Amadora, despeça-se das ruínas do Lido do seu lado esquerdo. Há uma rotunda. Segue em diante. Sobe, sobe, sobe. Vê um portão de garagem do seu lado direito, que é o oposto do esquerdo. É aí.

Almada é mais bonita de Inverno.

Queira Deus que a ampola não se me quebre dentro do bolso do casaco.

Uivemos ao Senhor.

Entropia é o que me acontece pela manhã.

Terá sido mais ou menos assim: a vida foi-lhe madrasta ao anunciar por via de um tumor na mandíbula que nunca mais poderia abrir nozes com os dentes.

Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.

Pariu e em seguida olhou balindo de horror o fauno que acabara de dar à luz.

Andou perdido pelas neves da Serra da Estrela. Depois avistou ao longe a Torre e um autocarro de excursionistas de Santo António dos Cavaleiros. Sentou-se e deixou-se morrer.

Riu-se. Depois chorou.

Índio Apache aos fins-de-semana, Heitor trabalhava na repartição de finanças do Pendão de segunda a sexta-feira.

Uma vez, depois do almoço, Óscar desapertou três botões das calças e peidou-se com estrépito, acordando a bisavó que cabeceava no sofá.

14 maio, 2008

laranja (um)

Este temor resignado prepara-se a partir de ansiolíticos, antidepressivos e opressões no tórax, mais ou menos a meio, numa linha vertical que vai do umbigo ao pomo de Adão. Junte-se-lhe uma dor difusa que se enrosca no esófago num serpentear oleoso e uma combinação de sístoles e diástoles hesitantes. Digamos que pouco convictas. Digamos que a agitar a ameaça de greve. Digamos que a pedir outra ponte de comando que não a minha, onde todos, do comandante ao grumete, evitam o leme. Escalda. O leme. Envolver tudo. Polvilhe-se pepitas de chocolate amargo sobre a massa, que por esta altura deverá apresentar uma tonalidade amarelo-cobardia e a consistência de uma refeição de tentilhão jovem. Levar ao frigorífico. Para solidificar.
Pode ser que amanhã acorde em Assuão, depois de uma sesta morna no landau lascado de Ali. Ali era um puto tisnado e a estalar de esperteza. Onde pára Ali por estes dias? Chefiará mujahidines em Kandahar? Terá copulado com a sua noiva púbere de cotovelos fincados num tapete persa, as retinas de corvo a descreverem piruetas de prazer? A ponta da língua a despontar dos lábios agora aqui, depois ali, conforme as nádegas agora acima, depois abaixo. Agora acima, depois abaixo. Abaixo. Abaixo a boca áspera e seca. Abaixo o sedativo e o comprimido sob a língua, o torpor e o electrocardiograma, a torneira de plástico azul cravada no braço e o sorriso complacente de um médico de ébano.
- Hoje não é dia de morrer.