18 janeiro, 2006

antiquário (dois)

Uma noite, o leite da lua vertido nos brincos de princesa e nos pés de hortelã do quintal, percebeu-se um lamento de calhandra ao frio no quartinho sem janela do segundo esquerdo, onde o calor transpirado dos lençóis era a filantropia mais doce da rua; primeiro um rumor envergonhado a preambular gemidos de agonia, de seguida guinchos de condenado na polé e passos pressurosos num cá e lá atarantado, nunca se soube de quem. Daí a pouco, escutado um uivo mais demorado que os antepassados, supôs-se uma moleirinha de nado vivo a surdir entre virilhas, e aos prantos horrendos de ventre esgarçado somou-se um choro de pulmões por estrear. Depois tombou do céu um silêncio de jazigo e houve, daí por diante, uma ausência indizível, uma memória magoada, especulava-se, nos sortidos de bolachas da despensa, na côdea incinerada de uma torrada com margarina, no café com leite de uma caneca do Bom Jesus de Braga, no subir e descer das escadas do prédio, num saco de pano a anunciar Pão em ponto cruz, na mão mortiça a desfazer-se em pó no corrimão de mármore, nas manhãs nascituras da estação ferroviária, num absorto despejar de açúcar para a água perfumada de um carioca de limão.
- Não quero que me vejam. Deslizo sem ruído por entre as portas do número doze, mais ou menos no vórtice da rua, e fujo aos miasmas de maldade das vizinhas. Não falo a ninguém, esgotaram-se-me os bons dias e calaram-se para sempre as molas da minha cama de castanho, porque morri o bocadinho suficiente para que assim seja. Sou um torvelinho de pó rua abaixo, o meu peito tosado a calar fundo esta falta que não passa e o meu coração encerrado numa caixinha de estanho sobre uma mesa pé de galo, a um cantinho da saleta, perto de uma lúcia-lima sedenta a que deixei de acudir.

Sem comentários:

Enviar um comentário