12 janeiro, 2006

saldos


Em 1986 Norberto Bobbio foi convidado para ministrar uma lição sobre democracia na Faculdade de Direito de Valparaíso, num Chile que ainda experimentava o látego de Pinochet. A 29 de Abril desse ano, os estudantes de Valparaíso estenderam-lhe uma faixa: Bienvenido Sr. Bobbio, los que luchamos por la democracia y la libertad lo saludan. Esse Bobbio saudado em Valparaíso, que era já sinónimo de liberdade intelectual, nasceu "entre Setembro de 1943 e Abril de 1945" ; o outro Bobbio, criança feliz no seio de uma "família abastada, numa bela casa, com duas criadas, um motorista pessoal […] e dois automóveis", nasceu em Turim no dia 18 de Outubro de 1909.

Norberto Bobbio nasceu duas vezes. Teve uma "pré-história" e uma "nova existência", como o próprio explica na Autobiografia – editada em Portugal (1999) pela Bizâncio - escrita em colaboração com Alberto Pappuzi, jornalista de La Stampa.

«Num dado momento da nossa vida – os vinte meses que separaram o dia 8 de Setembro de 1943 do 25 de Abril de 1945 – ficámos envolvidos em acontecimentos maiores que nós. Da total falta de participação na vida política italiana, a que nos constrangera o fascismo, fomos dar connosco, por assim dizer, moralmente obrigados a ocupar-nos de política em circunstâncias excepcionais, que são as da ocupação alemã e da guerra da Libertação […] Todos nós conhecemos episódios dolorosos: medo, fugas, prisões cativeiro de guerra; e a perda de pessoas queridas. Por isso, depois, nunca mais fomos como éramos antes. A nossa vida ficou dividida em duas partes, um "antes" e um "depois" que, no meu caso, são quase simétricas, porque a 25 de Julho de 1943, quando caiu o fascismo, eu tinha trinta e quatro anos: chegara ao "mezzo del cammin", ao meio caminho da minha vida. Nos vinte meses que vão entre Setembro de 1943 e Abril de 1945, nasci para uma nova existência, completamente diferente da anterior, que eu considero como uma pura e simples antecipação da vida autêntica, iniciada com a Resistência, em que participei como membro do Partido de Acção.»

Vinte anos depois da lição de Bobbio em Valparaíso, sabemos que três quartos dos jovens chilenos se estão nas tintas para a defesa da democracia (Diário de Notícias, 12 de Janeiro). A dois dias da segunda volta das Presidenciais, um chileno de 18 anos explica à France Presse que "a democracia já não está ameaçada".

"Cultura é equilíbrio intelectual, reflexão crítica, sentido de discernimento, aborrecimento frente a qualquer simplificação, a qualquer maniqueísmo, a qualquer parcialidade", escrevia Bobbio em 1968.

A democracia é hoje um bocejo demorado. No Chile como aqui. E a vida de Norberto Bobbio é comprada por menos de três euros numa estante de hipermercado.

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