13 janeiro, 2006

Häftling 31661

Trago na cabeça um bocado de prosa gravado a ferro quente. Tenho a certeza de que nenhuma imagem poderia ter produzido o mesmo efeito: uma cicatriz da palavra.

A 24 de Janeiro de 1943, duzentas e trinta mulheres francesas de todos os credos políticos e classes sociais subiram aos vagões de um comboio. Daí a três dias e três noites estavam em Auschwitz.

Membros da Resistência, Charlotte Delbo e o marido, Georges Dudach, foram capturados em Março de 1942 pela Gestapo. Dudach é fuzilado em Mont Valérien a 23 de Maio desse ano; na noite da execução, os alemães concedem-lhe um último e fugaz encontro com a mulher. Charlotte permanece no cárcere francês até ao fim de 1942; no dia 24 de Janeiro de 1943 é uma das prisioneiras "políticas" a bordo do comboio para Auschwitz; será uma das 49 sobreviventes que retornarão a França após a Guerra - em Janeiro de 1944 é enviada para Ravensbrück, onde um punhado de prisioneiras pouco menos que mortas é entregue à Cruz Vermelha.


"Auschwitz está tão profundamente gravado na minha memória que não o posso esquecer um só momento", dirá no pós-Guerra, expressão de um exorcismo impossível.

Charlotte Delbo vive o horror de Auschwitz em duas dimensões, como assinala Inga Clendinnen em Reading the Holocaust (Cambridge University Press, 1999): a mémoire profonde e as mémoirs ordinaires. As últimas são "diurnas", episódios narrativos "sem dor"; a primeira, dimensão profunda, manifesta-se quando escreve ou sonha. "A memória profunda preserva as sensações e marcas físicas", escreve Charlotte.

Il faut donner a voir – é a insígnia da prisioneira 31661, que, não obstante o inferno por que passa, obriga-se a clarificar que nunca as prisioneiras francesas de Auschwitz tiveram de suportar o tratamento reservado às mulheres judias.

Em Auschwitz and After, Charlotte obriga-nos a muito mais do que uma leitura. Somos obrigados a ver, lá onde um guarda alemão disse a Primo Levi: Here ist keine Warum.

Uma mulher arrastada por outras duas, que a seguravam pelos braços. Uma mulher judia. Ela não queria ser levada para o Bloco 25 [a meio caminho da câmara de gás]. Ela resiste. Os seus joelhos arrastam-se pelo chão. A sua roupa, arrancada com um puxão pelas mangas, está à volta do pescoço. As calças – calças de homem – foram arrancadas e são arrastadas pelos tornozelos. Um sapo esfolado. As costas estão expostas, as nádegas emagrecidas, molhadas de sangue e pus, estão pontuadas com feridas esburacadas.
Ela uiva. Os joelhos estão lacerados pela gravilha.
Tentem olhar. Tentem só e vejam.

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