11 janeiro, 2006

não voto em Mário Soares - um parêntesis solitário


As fábulas encerram, dita o cânone, uma verdade moral. A fábula socialista das Presidenciais de 2006 encerra uma verdade amoral.

Certo dia, um tribuno poeta de pálpebras murchas e idiossincrasia quixotesca chegou-se à frente. Queria ser candidato à Presidência da República - pelo socialismo, por Abril, pela esquerda, pelos deserdados, pelo Maio de 68, pelo “vento que passa”, por sabe-se lá mais o quê que o levasse ao corolário de Belém. Em suma, como Quixote, contra a inteireza de moinhos que o seu idealismo sem quartel não permitia divisar: a falta de apoio e confiança por parte da liderança partidária (Sócrates sabe há muito que terá um amigo em Cavaco); o bocejo generalizado da opinião pública; a tranquilidade sagaz de um antigo chefe de governo, figura tutelar da São Caetano à Lapa.

O poeta ocupou, assim, uma bandeja e ofereceu-se a si próprio, prosternado, à cúpula do seu partido. Que não soube muito bem o que fazer do cavaleiro da triste figura. Até ao dia em que o rolo compressor de uma espécie de realeza do edifício político português pôs termo ao embaraço dos homens do aparelho.

A salvo dos jorros de tinta – os mais imaginativos – que o vaudeville presidencial da corte de Mário Soares tem inspirado, uma leitura desapaixonada do atropelo da candidatura de Manuel Alegre acaba por resultar prosaica: nenhum facto político teria ilustrado melhor o desmoronamento, em Mário Soares, da célebre "ética republicana"; se é que esse conceito, tão sonoro quanto vago, alguma vez temperou a vaidade e a cupidez política do ex-Presidente da República.

Soares não é tão "fixe" como os aventais de plástico e os autocolantes de antanho anunciavam.

O verdadeiro Soares – sem o panamá a cingir-lhe a testa enquanto contempla as conchas e os seixos na Praia do Vau, ou monta tartarugas nas Seychelles – é o "pai da Europa" que amuou de despeito quando, em Julho de 1999, perdeu a Presidência do Parlamento Europeu para Nicole Fontaine, a quem atribuiu o simpático apodo de "dona de casa". O verdadeiro Soares, vencedor do combate contra as "tentações totalitárias" do PREC, é um jogador feroz no tabuleiro da intriga política, transpondo, a disparo de morteiro se preciso for, os obstáculos que lhe vão surgindo dentro ou fora do seu próprio castelo ideológico.

O verdadeiro Soares, mestre na adaptação, na manipulação e nos jogos mais espúrios do poder, desmascara-se no segundo mandato como Presidente da República: "Dar cabo do Cavaco a todo o custo" - assim se definia a agenda de Soares no término de um jantar, em Junho de 1993, com uma entourage de camaradas (Manuel Alegre ainda se sentava à mesa com o "amigo").

A candidatura de Mário Soares às Presidenciais de 2006 não é só um anacronismo da História contemporânea, ou um monumental erro de leitura (como o correr dos dias vai demonstrando à saciedade). É uma perversão – mais uma – do edifício político que alimentamos.

Em Dezembro de 2004, por ocasião do seu 80.º aniversário, o próprio Soares – mentiroso ou inepto, agora já pouco importa – dizia que havia dedicado uma grande porção da sua existência à política activa, afastando a possibilidade de voltar a apresentar-se como candidato à Presidência da República. "Seria perder muito tempo e já perdi demasiado com a política", dizia. "Basta!", bradaria durante as comemorações. E, em Junho do ano passado, garantia: "Se o Manuel Alegre se apresentasse, sou dos que o apoiariam". "Eu sou um pobre cidadão. Um cidadão que teve o seu passado, mas agora estou perfeitamente noutra".

Se Soares, enquanto figura histórica - sumo coveiro do socialismo - na construção do Portugal contemporâneo, ainda se podia arrogar algum capital de respeitabilidade, está a encarregar-se de o destruir com assinalável competência. A candidatura de Soares nasce, na mais benévola das interpretações, da incoerência; se quisermos ser rigorosos, nasce da mentira. Nasce coxa. Caminha coxa. Tombará coxa no dia das Eleições.

O drama da corrente soarista, desta feita, é que os talentos do fundador do PS estão esgotados. O percurso de Soares, desde que anunciou, em Agosto, com pompa inusitada, que "aceitava" ser candidato a Belém – como se o país real tivesse acorrido às portas da Fundação Mário Soares numa súplica histérica por um político sebastiânico octogenário -, é uma colecção de trapalhadas, desde os ataques mais torpes a Cavaco Silva – a quem continua a reservar a má educação da terceira pessoa do singular - ao recurso cansativo às boutades que já só encantam meia dúzia de cabeleireiras, ou à culpabilização dos jornalistas, ou à ideia de que o país retrocederá um século se a direita vencer as Presidenciais.

"Se eu perder a culpa é minha", disse ontem Mário Soares com a leveza habitual. Na verdade, nada o preocupa, nem sequer Cavaco e a sua camarilha endinheirada; sabe que no dia 23 de Janeiro regressará à tranquilidade dos chinelos, dos colóquios e dos artigos sobre a globalização, àquela paz de espírito de saber que é o pai jubilado desta democracia tão pluralista e que, por isso mesmo, nada faltará aos seus.

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