17 janeiro, 2006

antiquário (um)

As vizinhas do primeiro esquerdo, uma trindade de cabeças galhudas que não conheciam água e um vagar de escrófulas e varizes nos chinelos de pano, lembravam górgonas de prédio antigo, sulcando o cotão da alcatifa por entre cestos de croché e caloríferos a gás de bilha. Daí resultava que as tardes, o arrastar penoso de um ponteiro pequeno num relógio de parede que badalava a materialização da mãe de Cristo a cada quarto de hora, eram o terror de ver as carnes caiadas na rigidez da pedra de lioz e depois talhadas em cordame para um pináculo dos Jerónimos; a redenção consistia em espreitar-lhes as carrancas nos retratos convexos da terrina de prata, sem lhes fitar com olhos desprotegidos as serpentes ondulantes na moldura da testa, ora descobrindo ora escondendo os cumes dos toutiços e os ganchos, e depois sonhar a eliminação dos monstros, primeiro Esteno, depois Euríale e a Medusa, decapitados pelo voo rodopiante das fatias de mortadela e queijo flamengo extraídas aos pães de leite.
- O menino veja se lancha, que a mãe já não deve tardar muito – crocitava uma delas, as nádegas espapaçando-se mornas e húmidas numa poltrona de veludo, uma massa gemebunda de ossos quebradiços e atavios negros de luto apodrecido.

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