19 janeiro, 2006

antiquário (três)

A marquise do terceiro esquerdo era habitada por casais de periquitos que pendiam do tecto em gaiolas circulares e coloridas como enfeites de papel num arraial de pátio pobre, um gotejo ruidoso de plástico, arame e miniaturas de banheiras regadas de esterco e penugem. Havia, em prateleiras de aglomerado que abaulavam de cansaço, frascos de vidro com pregos e camarões e sacos de ossadas de choco a aguardar a forca nos telhados das gaiolas, ao que se seguia um grosar nervoso dos bicos; havia torres oblíquas de pastas de cartão a transbordar de postais do Algarve, Portimão sem ti meu rebuçado não tem graça nenhuma um beijo desta que te adora Ester, e recortes de jornal amarelos de idade.
Entre flores, sorrisos e cantos milhões de corações celebraram o trabalho e a liberdade. Sexta-feira, três de Maio de mil novecentos e setenta e quatro.
- A puta que pariu os comunistas e esses cabrões vendidos do MFA, cujos tomates deviam ser mergulhados em detergente – ouvia-se, sílaba por sílaba, sem perífrases, de lábios franzidos de um ódio de bílis, após um soslaio aguçado, religioso, no sentido do relicário de papel.
E no meio do tumulto de chilreios o professor primário derramava o lumbago e os eflúvios de incontinência numa cadeira de vime, a decair num bafio de humidade e imundície que as vizinhas diziam resultar de um atropelamento na passadeira da rua D. Pedro IV, durante a travessia traiçoeira do lugar para a carpintaria. Daí os olhos espantados, pintados de artérias, que ameaçavam desprender-se das órbitas, daí o semblante de balão a caminho do lume e os ângulos rectos da testa, aplainada num pneu do furgão da padaria.
- Nunca mais foi o mesmo, coitado do senhor professor – comentava-se nas tardes de canasta do rés-do-chão esquerdo, as sobrancelhas a compadecerem-se em expressões de arte sacra entre dentadas nos biscoitos de canela.
Nisto, o ocaso de um domingo de reformado era a memória imaginada de um vinte de Maio, de Marcello Caetano e Américo Thomaz na Doca da Pontinha, das náuseas de ambos no convés do Pirata Azul, entre o Funchal e o Porto Santo, e de um Boeing da TAP a despejar os restos da História num aeroporto do Brasil.
- A puta que pariu os comunistas.
Sem ao menos poder plantar, atento, as solas nas ombreiras das portas, hoje este prédio, amanhã estoutro, e estudar as conversas, perceber o febrão subversivo no caminhar vergado de uma capelista viúva do ultramar, detectar o Avante clandestino na mala do carteiro, telefonar à PIDE e bem assim lamber com os olhos o redondo dos quadris e dos peitos acima abaixo no passeio, lançando de vez em quando o anzol do joelho, a rótula viva que roçava as saias num murmúrio de aprovação.
- Mas que belo canjirão, sim senhor.
Sem ao menos poder sobreviver, como dantes, à correcção de uma prova antiga, uma sobra de mestre-escola recitada a periquitos, o menino saiu-me cá um asno, e o coração a desistir, por fim, do exílio da marquise no ar rarefeito de uma redacção sem vírgulas.

Esta Páscoa fomos à terra eu e os meus pais para comermos o cabrito e as batatas e deixar duas notas num envelope ao lado de um pires com amêndoas e de uma garrafa de licor numa bandeja para o senhor prior e outros dois senhores de túnica encarnada que andam um domingo inteiro com um Jesus pequenino pregado numa cruz e o dão a beijar à minha família que é um tio a arrotar vapores de aguardente de mel para as costas da mão os meus pais e uma tia-avó que dá um beijo maior do que os nossos num joelho esfolado de Cristo que depois fica cheio de cuspo e por isso deve sarar mais depressa pelo menos é o que eu acho e depois rezamos um Pai Nosso e eu esqueço-me sempre do que vem a seguir ao pão nosso de cada dia nos dai hoje pelo que a minha tia-avó abre muito os olhos na minha direcção o que me deixa com medo e muito aflito para ir à casa de banho e depois vejo o senhor prior a salpicar o candeeiro e as pêras na fruteira em cima da mesa com água benta e fico a torcer-me de vontade.

18 janeiro, 2006

XXVIII

«As luzes que acendemos um no outro são eternas

Nota: a vida era, por esses dias de Inverno numa avenida de Lisboa, uma navegação com vento por banda num oceano de mel, um ondular de encontro a praia muito chã e muito formosa; cuidava eu, desenganado por um crescer espinhoso, que nada havia por encontrar e que das coisas da ternura sabia já tudo.

Nela até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem nenhuma cousa de metal, nem de ferro; nem lho vimos. A terra, porém, em si, é de muito bons ares, assim frios e temperados como os d’Entre Doiro e Minho, porque neste tempo d’agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas, infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem.
(Carta de Pêro Vaz de Caminha)

antiquário (dois)

Uma noite, o leite da lua vertido nos brincos de princesa e nos pés de hortelã do quintal, percebeu-se um lamento de calhandra ao frio no quartinho sem janela do segundo esquerdo, onde o calor transpirado dos lençóis era a filantropia mais doce da rua; primeiro um rumor envergonhado a preambular gemidos de agonia, de seguida guinchos de condenado na polé e passos pressurosos num cá e lá atarantado, nunca se soube de quem. Daí a pouco, escutado um uivo mais demorado que os antepassados, supôs-se uma moleirinha de nado vivo a surdir entre virilhas, e aos prantos horrendos de ventre esgarçado somou-se um choro de pulmões por estrear. Depois tombou do céu um silêncio de jazigo e houve, daí por diante, uma ausência indizível, uma memória magoada, especulava-se, nos sortidos de bolachas da despensa, na côdea incinerada de uma torrada com margarina, no café com leite de uma caneca do Bom Jesus de Braga, no subir e descer das escadas do prédio, num saco de pano a anunciar Pão em ponto cruz, na mão mortiça a desfazer-se em pó no corrimão de mármore, nas manhãs nascituras da estação ferroviária, num absorto despejar de açúcar para a água perfumada de um carioca de limão.
- Não quero que me vejam. Deslizo sem ruído por entre as portas do número doze, mais ou menos no vórtice da rua, e fujo aos miasmas de maldade das vizinhas. Não falo a ninguém, esgotaram-se-me os bons dias e calaram-se para sempre as molas da minha cama de castanho, porque morri o bocadinho suficiente para que assim seja. Sou um torvelinho de pó rua abaixo, o meu peito tosado a calar fundo esta falta que não passa e o meu coração encerrado numa caixinha de estanho sobre uma mesa pé de galo, a um cantinho da saleta, perto de uma lúcia-lima sedenta a que deixei de acudir.

17 janeiro, 2006

antiquário (um)

As vizinhas do primeiro esquerdo, uma trindade de cabeças galhudas que não conheciam água e um vagar de escrófulas e varizes nos chinelos de pano, lembravam górgonas de prédio antigo, sulcando o cotão da alcatifa por entre cestos de croché e caloríferos a gás de bilha. Daí resultava que as tardes, o arrastar penoso de um ponteiro pequeno num relógio de parede que badalava a materialização da mãe de Cristo a cada quarto de hora, eram o terror de ver as carnes caiadas na rigidez da pedra de lioz e depois talhadas em cordame para um pináculo dos Jerónimos; a redenção consistia em espreitar-lhes as carrancas nos retratos convexos da terrina de prata, sem lhes fitar com olhos desprotegidos as serpentes ondulantes na moldura da testa, ora descobrindo ora escondendo os cumes dos toutiços e os ganchos, e depois sonhar a eliminação dos monstros, primeiro Esteno, depois Euríale e a Medusa, decapitados pelo voo rodopiante das fatias de mortadela e queijo flamengo extraídas aos pães de leite.
- O menino veja se lancha, que a mãe já não deve tardar muito – crocitava uma delas, as nádegas espapaçando-se mornas e húmidas numa poltrona de veludo, uma massa gemebunda de ossos quebradiços e atavios negros de luto apodrecido.

16 janeiro, 2006

orfandade temporária


Estou no vazio entre livros. É um desamparo momentâneo; o desassossego da escolha. Há tanto por debulhar nas estantes…

13 janeiro, 2006

Häftling 31661

Trago na cabeça um bocado de prosa gravado a ferro quente. Tenho a certeza de que nenhuma imagem poderia ter produzido o mesmo efeito: uma cicatriz da palavra.

A 24 de Janeiro de 1943, duzentas e trinta mulheres francesas de todos os credos políticos e classes sociais subiram aos vagões de um comboio. Daí a três dias e três noites estavam em Auschwitz.

Membros da Resistência, Charlotte Delbo e o marido, Georges Dudach, foram capturados em Março de 1942 pela Gestapo. Dudach é fuzilado em Mont Valérien a 23 de Maio desse ano; na noite da execução, os alemães concedem-lhe um último e fugaz encontro com a mulher. Charlotte permanece no cárcere francês até ao fim de 1942; no dia 24 de Janeiro de 1943 é uma das prisioneiras "políticas" a bordo do comboio para Auschwitz; será uma das 49 sobreviventes que retornarão a França após a Guerra - em Janeiro de 1944 é enviada para Ravensbrück, onde um punhado de prisioneiras pouco menos que mortas é entregue à Cruz Vermelha.


"Auschwitz está tão profundamente gravado na minha memória que não o posso esquecer um só momento", dirá no pós-Guerra, expressão de um exorcismo impossível.

Charlotte Delbo vive o horror de Auschwitz em duas dimensões, como assinala Inga Clendinnen em Reading the Holocaust (Cambridge University Press, 1999): a mémoire profonde e as mémoirs ordinaires. As últimas são "diurnas", episódios narrativos "sem dor"; a primeira, dimensão profunda, manifesta-se quando escreve ou sonha. "A memória profunda preserva as sensações e marcas físicas", escreve Charlotte.

Il faut donner a voir – é a insígnia da prisioneira 31661, que, não obstante o inferno por que passa, obriga-se a clarificar que nunca as prisioneiras francesas de Auschwitz tiveram de suportar o tratamento reservado às mulheres judias.

Em Auschwitz and After, Charlotte obriga-nos a muito mais do que uma leitura. Somos obrigados a ver, lá onde um guarda alemão disse a Primo Levi: Here ist keine Warum.

Uma mulher arrastada por outras duas, que a seguravam pelos braços. Uma mulher judia. Ela não queria ser levada para o Bloco 25 [a meio caminho da câmara de gás]. Ela resiste. Os seus joelhos arrastam-se pelo chão. A sua roupa, arrancada com um puxão pelas mangas, está à volta do pescoço. As calças – calças de homem – foram arrancadas e são arrastadas pelos tornozelos. Um sapo esfolado. As costas estão expostas, as nádegas emagrecidas, molhadas de sangue e pus, estão pontuadas com feridas esburacadas.
Ela uiva. Os joelhos estão lacerados pela gravilha.
Tentem olhar. Tentem só e vejam.

12 janeiro, 2006

saldos


Em 1986 Norberto Bobbio foi convidado para ministrar uma lição sobre democracia na Faculdade de Direito de Valparaíso, num Chile que ainda experimentava o látego de Pinochet. A 29 de Abril desse ano, os estudantes de Valparaíso estenderam-lhe uma faixa: Bienvenido Sr. Bobbio, los que luchamos por la democracia y la libertad lo saludan. Esse Bobbio saudado em Valparaíso, que era já sinónimo de liberdade intelectual, nasceu "entre Setembro de 1943 e Abril de 1945" ; o outro Bobbio, criança feliz no seio de uma "família abastada, numa bela casa, com duas criadas, um motorista pessoal […] e dois automóveis", nasceu em Turim no dia 18 de Outubro de 1909.

Norberto Bobbio nasceu duas vezes. Teve uma "pré-história" e uma "nova existência", como o próprio explica na Autobiografia – editada em Portugal (1999) pela Bizâncio - escrita em colaboração com Alberto Pappuzi, jornalista de La Stampa.

«Num dado momento da nossa vida – os vinte meses que separaram o dia 8 de Setembro de 1943 do 25 de Abril de 1945 – ficámos envolvidos em acontecimentos maiores que nós. Da total falta de participação na vida política italiana, a que nos constrangera o fascismo, fomos dar connosco, por assim dizer, moralmente obrigados a ocupar-nos de política em circunstâncias excepcionais, que são as da ocupação alemã e da guerra da Libertação […] Todos nós conhecemos episódios dolorosos: medo, fugas, prisões cativeiro de guerra; e a perda de pessoas queridas. Por isso, depois, nunca mais fomos como éramos antes. A nossa vida ficou dividida em duas partes, um "antes" e um "depois" que, no meu caso, são quase simétricas, porque a 25 de Julho de 1943, quando caiu o fascismo, eu tinha trinta e quatro anos: chegara ao "mezzo del cammin", ao meio caminho da minha vida. Nos vinte meses que vão entre Setembro de 1943 e Abril de 1945, nasci para uma nova existência, completamente diferente da anterior, que eu considero como uma pura e simples antecipação da vida autêntica, iniciada com a Resistência, em que participei como membro do Partido de Acção.»

Vinte anos depois da lição de Bobbio em Valparaíso, sabemos que três quartos dos jovens chilenos se estão nas tintas para a defesa da democracia (Diário de Notícias, 12 de Janeiro). A dois dias da segunda volta das Presidenciais, um chileno de 18 anos explica à France Presse que "a democracia já não está ameaçada".

"Cultura é equilíbrio intelectual, reflexão crítica, sentido de discernimento, aborrecimento frente a qualquer simplificação, a qualquer maniqueísmo, a qualquer parcialidade", escrevia Bobbio em 1968.

A democracia é hoje um bocejo demorado. No Chile como aqui. E a vida de Norberto Bobbio é comprada por menos de três euros numa estante de hipermercado.

11 janeiro, 2006

não voto em Mário Soares - um parêntesis solitário


As fábulas encerram, dita o cânone, uma verdade moral. A fábula socialista das Presidenciais de 2006 encerra uma verdade amoral.

Certo dia, um tribuno poeta de pálpebras murchas e idiossincrasia quixotesca chegou-se à frente. Queria ser candidato à Presidência da República - pelo socialismo, por Abril, pela esquerda, pelos deserdados, pelo Maio de 68, pelo “vento que passa”, por sabe-se lá mais o quê que o levasse ao corolário de Belém. Em suma, como Quixote, contra a inteireza de moinhos que o seu idealismo sem quartel não permitia divisar: a falta de apoio e confiança por parte da liderança partidária (Sócrates sabe há muito que terá um amigo em Cavaco); o bocejo generalizado da opinião pública; a tranquilidade sagaz de um antigo chefe de governo, figura tutelar da São Caetano à Lapa.

O poeta ocupou, assim, uma bandeja e ofereceu-se a si próprio, prosternado, à cúpula do seu partido. Que não soube muito bem o que fazer do cavaleiro da triste figura. Até ao dia em que o rolo compressor de uma espécie de realeza do edifício político português pôs termo ao embaraço dos homens do aparelho.

A salvo dos jorros de tinta – os mais imaginativos – que o vaudeville presidencial da corte de Mário Soares tem inspirado, uma leitura desapaixonada do atropelo da candidatura de Manuel Alegre acaba por resultar prosaica: nenhum facto político teria ilustrado melhor o desmoronamento, em Mário Soares, da célebre "ética republicana"; se é que esse conceito, tão sonoro quanto vago, alguma vez temperou a vaidade e a cupidez política do ex-Presidente da República.

Soares não é tão "fixe" como os aventais de plástico e os autocolantes de antanho anunciavam.

O verdadeiro Soares – sem o panamá a cingir-lhe a testa enquanto contempla as conchas e os seixos na Praia do Vau, ou monta tartarugas nas Seychelles – é o "pai da Europa" que amuou de despeito quando, em Julho de 1999, perdeu a Presidência do Parlamento Europeu para Nicole Fontaine, a quem atribuiu o simpático apodo de "dona de casa". O verdadeiro Soares, vencedor do combate contra as "tentações totalitárias" do PREC, é um jogador feroz no tabuleiro da intriga política, transpondo, a disparo de morteiro se preciso for, os obstáculos que lhe vão surgindo dentro ou fora do seu próprio castelo ideológico.

O verdadeiro Soares, mestre na adaptação, na manipulação e nos jogos mais espúrios do poder, desmascara-se no segundo mandato como Presidente da República: "Dar cabo do Cavaco a todo o custo" - assim se definia a agenda de Soares no término de um jantar, em Junho de 1993, com uma entourage de camaradas (Manuel Alegre ainda se sentava à mesa com o "amigo").

A candidatura de Mário Soares às Presidenciais de 2006 não é só um anacronismo da História contemporânea, ou um monumental erro de leitura (como o correr dos dias vai demonstrando à saciedade). É uma perversão – mais uma – do edifício político que alimentamos.

Em Dezembro de 2004, por ocasião do seu 80.º aniversário, o próprio Soares – mentiroso ou inepto, agora já pouco importa – dizia que havia dedicado uma grande porção da sua existência à política activa, afastando a possibilidade de voltar a apresentar-se como candidato à Presidência da República. "Seria perder muito tempo e já perdi demasiado com a política", dizia. "Basta!", bradaria durante as comemorações. E, em Junho do ano passado, garantia: "Se o Manuel Alegre se apresentasse, sou dos que o apoiariam". "Eu sou um pobre cidadão. Um cidadão que teve o seu passado, mas agora estou perfeitamente noutra".

Se Soares, enquanto figura histórica - sumo coveiro do socialismo - na construção do Portugal contemporâneo, ainda se podia arrogar algum capital de respeitabilidade, está a encarregar-se de o destruir com assinalável competência. A candidatura de Soares nasce, na mais benévola das interpretações, da incoerência; se quisermos ser rigorosos, nasce da mentira. Nasce coxa. Caminha coxa. Tombará coxa no dia das Eleições.

O drama da corrente soarista, desta feita, é que os talentos do fundador do PS estão esgotados. O percurso de Soares, desde que anunciou, em Agosto, com pompa inusitada, que "aceitava" ser candidato a Belém – como se o país real tivesse acorrido às portas da Fundação Mário Soares numa súplica histérica por um político sebastiânico octogenário -, é uma colecção de trapalhadas, desde os ataques mais torpes a Cavaco Silva – a quem continua a reservar a má educação da terceira pessoa do singular - ao recurso cansativo às boutades que já só encantam meia dúzia de cabeleireiras, ou à culpabilização dos jornalistas, ou à ideia de que o país retrocederá um século se a direita vencer as Presidenciais.

"Se eu perder a culpa é minha", disse ontem Mário Soares com a leveza habitual. Na verdade, nada o preocupa, nem sequer Cavaco e a sua camarilha endinheirada; sabe que no dia 23 de Janeiro regressará à tranquilidade dos chinelos, dos colóquios e dos artigos sobre a globalização, àquela paz de espírito de saber que é o pai jubilado desta democracia tão pluralista e que, por isso mesmo, nada faltará aos seus.

10 janeiro, 2006

a casa fria (três)

Esta noite sento-me no banquinho lacado do toucador, antes, e junto ao braço do sofá, depois. Domino as cornucópias e os torneados do meu cabelo avelã e sinto um fremir da pele na falda da nuca; o arrepio de aletria e canela nos extremos das cerdas da minha escova madrepérola; uma madeixa incendiada de candeeiros e paus de incenso que goteja num demorar de mel da minha testa para o meu queixo – e o meu rosto assim reflectido no espelho, ao lado de uma lauda rasgada em que desenhei um coração varado por uma flecha apache e escrevi questa solitudine immensa, é o quarto crescente de uma lua de maçapão e sonetos de amor.
- A casa fria, sem música, sem abraços – segredo numa prece só minha enquanto afofo as almofadas de tafetá e componho o sobrecéu de princesa que me alinda a cama.
No sofá agoniza um livro; nas páginas silva uma corrente de ar de casebre abandonado. E eu sou uma botija de água morna e um cobertor, uma cabeça que esmorece de sono e uma agulha de gira-discos numa curva estropiada de um disco velhinho do Nilton César.
- Espere um pouco um pouquinho mais espere um pouco um pouquinho mais espere um pouco um pouquinho mais espere um pouco um pouquinho mais espere um pouco um pouquinho mais...

09 janeiro, 2006

a casa fria (dois)

A tarde do meu domingo morre de velhice nas calhas de alumínio da marquise, o terraço do meu palácio aqueménida. Como a aldrava da porta - um morrer de ruína. Nos passeios da minha praceta prospera o verde oliva dos caixotes do lixo e acotovelam-se turistas em cachos coloridos de panamás, o clique-clique das máquinas fotográficas na direcção da minha sala hipostila e do anjo de gesso que retouça num globo; as demais onomatopeias de cães réprobos e lá no alto, quinto andar, as janelas abrem-se num fastígio de comício e o pó liberta-se de um pano que agito num aceno de doméstica. Aquela ali, de cabeça redonda e sorriso elíptico, sou eu. Hoje fujo daqui - os sacos de supermercado esbodegam-se em maçãs reinetas, pevides e pinhões sobre a mesa da cozinha. E os choupos despidos do jardim de Queluz são ciprestes de Chiraz; e Persépolis é um carrocel de faróis na rotunda e uma praceta de prédios ladrilhados, um castelo de miséria e fibrocimento no cume de um monte e um samba-canção imigrante na cave de uma taberna.

06 janeiro, 2006

a casa fria (um)

Percorro esta esquadria da cal, do mármore em pó, do gesso e da areia fina com um volutear melífluo das retinas. Paredes. De outro modo entonteço de tamanha invernia, de uma tal geometria sem ao menos a nódoa de um dedo fusco e descuidado, o encarvoado de um suplemento antigo folheado numa tarde de chuva miúda, sem uma mancha de candura nos traços trémulos de um sol e de uma casa a lápis de cera a um canto da sala, por detrás de um anjo de gesso que nem o céu pôde abrigar, sem um eu de cabeça redonda e sorriso elíptico, o vestido um triângulo e os pés dois segmentos de recta, perto do caule de um girassol que cresceria acima das águas-furtadas num telhado desigual, sem a imperfeição de um resto de varejeira que fosse, uma ponta de asa que rutilaria quando a luz do sol viajasse da praceta para as traseiras, o toldo do café a desaparecer nas sombras e os veios pequeníssimos, palavra que seria assim, a acenderem-se em menos de um piscar das pálpebras, como as luzes de Natal no meu pinheiro de plástico.

das verdades indigestas


«Depois da revolução, as pessoas estavam-se rigorosamente nas tintas para a arte pela arte, não pensavam em comprar, tinham era de sobreviver. E ainda bem que a arte é elitista, porque o gosto democrático é sempre nivelado por baixo.»

Julião Sarmento - Diário de Notícias.

04 janeiro, 2006

janeiro de dois mil e seis


há um desgoverno que me atravessa; é uma saudade difusa de vozes e espuma de mar, de uma estrofe que me fere no mais fundo se a percebo no tumulto de um transístor de pastelaria, ou num posto de rádio à deriva na estática da estrada; um lamento qualquer, parece-me, sobre o recolhimento e o amor, dir-se-ia, sobre a tirania do primeiro e a capitulação resignada do segundo, imaginemos. Primeira, segunda, ponto morto. A este, que se esbarronda numa pieira de crepúsculo enquanto estuda os desenhos do sabão nas palmas das mãos, nada devo; do outro, que me lembra o vento efémero, nada sei.